Serpentário


 

O que dizer quando já dissemos tudo, quando já provamos tudo, quando as nossas sensações já explodiram como um arco-íris iluminado e quando, em outras ocasiões, nossa vontade tornou-se úmida e pegajosa como uma enguia, com um sentido de deslocamento tão grande que sequer nos reconhecemos?

O que falar quando, durante muito, muito tempo mentimos, e as mentiras ficaram grudadas em nós como carapaças, quando nos habituamos a iludir de modo tão insano que, após algum tempo de desencanto, de desolação, de ruína, sequer nos importamos se o que dizíamos tinha ou não coerência, sentido, razão…se o que fizemos para nós mesmos redundou em uma indiferença tão grande que nos tomou como as garras de um passado já tão morto dentro de nós?

Sim, claro, nada mais havia para recuperar, e tu sabias disso tanto quanto eu, e, por outro lado, nos deliciávamos com esses jogos mesquinhos, de caça e de caçador, em que em algumas vezes somente eu queria descobrir tuas inverdades e em que, em outras oportunidades, eram tuas as vinganças, as desídias, os deboches, os prazeres nas torturas de amor diárias a que nos dedicávamos…

Em nome de que fizemos tudo isso? Do amor decerto que não, pois o fomos perdendo com o decorrer de nossas próprias fatalidades, de nossas vontades mesquinhas… Nosso amor foi minguando, fenecendo, tornando-se bruma ante nossas pequenas maldades; então porque fizemos, se não foi em nome do amor, talvez tenha sido em razão de um sentimento de culpa que nos acompanha a ambos, que nos entretém assim juntos, como duas serpentes, como duas tristezas que se buscam, como duas tenebrosas sinas…

Eu sei que me esqueceste, mas, para ser sincero, eu jamais estive junto a ti; talvez na cama mas para nós, cães de rua, parceiros iguais o tempo todo sempre enjoam…qual de n´los teve a iniciativa da traição, eu, tu, com quem, onde, de que modo? Tanto faz, tanto desfaz…Hoje reconhecemos que não somos nada do que dissemos um ao outro que seríamos. Acho que começamos mentindo aí, e fomos assim, de mansinho nos tornando um o algoz do outro…mas só até hoje, pois agora, por Deus agora! tudo, mas tudo mesmo vai terminar…

Gritos varam as noites do mundo, mas mesmo aqueles foram poucos, até o momento em que a lâmina parou de golpear.

Mortalha


Não sei exatamente se este é o momento para te dizer o que tento, de há muito, falar. De qualquer maneira, é necessário… ou talvez não, talvez já saibas tudo que vou dizer, é muito provável que sim, pois lês o que a minha mente quer, portanto…talvez não reste mais nada a fazer do que sair, me afastar, carregar comigo as conseqüências do que fiz, e eu fiz, sim, eu fiz, e nada existe para ser negado, ainda mais em relação ao que já sabes, então só resta amargar essa tristeza, essa estupidez que me deixa em tal estado deplorável…Sim, eu vou, entendi que nada tenho ou nada devo dizer, que isso já passou, e que teria feito melhor se simplesmente me tivesse ido já de primeira…no entanto, fiquei aqui, e talvez a minha presença atormente tanto por nos lembrar o que vivemos, nossos sonhos, utopias, sentimentos, o que construímos e agora – agora! – saber que nada mais vai restar, senão apenas lembranças.

Sim, amanhã parto para São Paulo, no voo das treze e quinze. Vou direto pra casa do Edgar e então conto para ele… Não, claro que ele não sabia. Infelizmente a única pessoa que eu não queria que soubesse era quem? Você, é claro, e que foi quem primeiro soube, então amanhã estou indo, devo ficar lá talvez por uma semana, e depois viajo para Recife, de onde jamais deveria ter saído…Queres o telefone do Edgar? Ah, sim, não queres, certo, claro tens razão em não querer saber, afinal de contas não vais me ligar.

Bem, estou indo, vou levar só o necessário, amanhã venho buscar o resto. É, sim, de manhã cedo um resto vem buscar o outro. Hoje durmo na… ah, sim, desculpe, claro que não queres saber… está bem, então estou indo. Que horas posso passar para buscar? Ah, não sei, não sei…estou indo…

Abro e fecho a porta do apartamento e fico aguardando o elevador. Lá fora começa uma chuva fina e de repente, como acontecia quando eu era criança e ficava só, me bate uma melancolia enorme e eu choro. Finalmente, quando o elevador chega ao andar e eu entro, tenho a impressão de que minha vida toda está ali comigo, como um casulo estranho, como uma carga desajeitada que insiste em me pesar sobre os ombros, que me paralisa e anestesia o corpo. Escuto cada barulho dos mecanismos do elevador, enquanto descemos, eu e minha angústia. O elevador e eu.

O elevador, estranhamente, parece uma mortalha.

Enio e Maria Eunice


 O centauro, por menos provável que pareça, não mora nos pampas. O centauro também não é centenário, conforme poderia se pensar; na realidade é bem mais antigo. Alguns o chamam de mito, outros de O MITO, o que é mais interessante, mas o centauro continua por aí, meio arredio, meio sem aparecer nos points de costume. O centauro é um ser muito indeciso, entre a macheza do cavalo e entre o persistente senso de humanidade, e por isso ele é basicamente um bicho-homem (ou um homem-bicho) triste. Se há alguém com quem ele se entenda é com a iara, aquela que é metade peixe, metade gata (alguém já viu uma iara ou uma sereia feias, por acaso?). Com ela sim, o centauro consegue conversar, consegue se sentir bem. Já namoraram, mas nunca além do sentido mais metafórico, porque é impossível a ambos concretizarem seus sonhos eróticos. E isso é, muitas vezes, paralisante.

          Nosso centauro se chama Enio e nossa iara se chama Maria Eunice, e eles adoram conversar, contar a respeito de suas experiências, sejam elas bem ou mau sucedidas. Aí teve uma noite em que, embaixo de um luar maravilhoso, se abraçaram e, perdidos entre sensações de amor, de encanto, beijaram-se de modo tão romântico que a própria lua, envergonhada, pediu para que uma nuvem cobrisse sua pudicícia. A lua, ao contrário do que pensam, não é para os namorados. É para os enamorados, o que é um pouquinho diferente. De qualquer modo, não quis presenciar os esforços românticos que houve entre um centauro e uma iara. As estrelas sim, essas indiscretas, presenciaram tudo.

          Infelizmente o sol raiou, e Maria Eunice retirou-se para o fundo de seu lago, onde se sentia mais prisioneira do que rainha, mais constrangida do que esfuziante. E logo Enio igualmente se foi para longe, galopando para nunca mais voltar.

          Hoje Maria Eunice já envelheceu muito, e passa seus dias lembrando da noite em que Enio a tomou nos braços, e em que seus lábios a tomaram como um vendaval. Nas tardes, Maria Eunice costuma cantar, mas até seus cantos não são mais os mesmos, pois o que lhe falta em encanto sobra em saudades.

          Enio cada vez mais tem crises de identidade, pois se lhe a paixão o atormenta como uma lâmina, as patas o impulsionam para cada vez mais longe, mesmo que ele assim não queira. Enquanto isso o tempo, mensageiro de todos nós, simplesmente cofia suas longas barbas, enquanto expulsa as nuvens daqui para lá e de lá para cá. HILTON BESNOS

Gavetas


O homem, já idoso e só, procurou, aqui e ali, as suas justificativas. Achou-as facilmente, estavam espalhadas por sua casa, por sua história. Depois procurou os seus amores, que estavam em   gavetas: sexo, paixão, amizade,  reconhecimento, tudo isso e muito mais poderia ser amor. No entanto ele buscou só a palavra amor. Achou e, ali, buscou seu conteúdo: havia alguns nomes, os dos irmãos, os dos amigos.

Procurou mais no fundo da gaveta e achou duas fotos antigas, em preto e branco, e reconheceu ser a de seus pais. E quando menos esperava, uma foto três por quatro, já esmaecida pelo tempo, quase saltou-lhe a mão. Mostrava uma mulher bonita, de traços bem definidos e um olhar decidido, que contrastava com a boca pequena, bem feita. Ela, a foto, estava lá, mas ele não identificou o rosto da bela mulher. Estava muito cansado. Viu as fotos dos filhos, e pensou – ingratos! – fechando a gaveta de vez.

E lá ficou a foto do seu amor, no fundo da gaveta, sem que ele, das dezenas de vezes que teve oportunidade em sua vida –  o reconhecesse.

Nano-bolha


 

Às vezes, quando parece que o mundo todo fala, grita, berra, comenta, discute, eu clico a tecla mode. Isso ocorre no auge da confusão e, a partir daí tudo e todos ficam mudos, imóveis, e eu tenho a maravilhosa sensação de ser um deus. O tempo, contudo, continua fluindo, mas de uma forma imperceptivelmente mais lenta, de maneira que quando cessa o efeito da tecla mode, poucos são os que notam micro-diferenças no relógio e – claro – não dão a mínima importância ao fato.

Mode é tão poderoso que para tudo ao meu redor; então as dimensões tempo-espaço abrem uma nano-bolha virtual, onde me abrigo de todo o ruído, som e palavrório explodindo ao meu redor. Então eu descanso e me integro ao universo. Cada vez que eu clico o botão mágico, a minha vida diminui exatamente o tempo de duração da bolha.

Talvez por isso, por ser uma pessoa desmedida e por não saber controlar minhas ansiedades, eu esteja já tão envelhecido, e minha pele tenha se carcomido tão rapidamente. Tenho tempo para as minhas memórias, e normalmente uso a nano-bolha para escrevê-las, de modo tão lírico que talvez  algum descendente se dê ao trabalho de lê-las, entendendo um pouco mais o que sou (ou o que fui, quando lerem).

De todo modo, aqueles momentos maravilhosos me pertenceriam para sempre, me acolheriam. E quando enfim eu encontrasse meu descanso, talvez eterno, talvez não, eu estaria feliz. Poucos são tão bem afortunados, tão agraciados por Deus. Fui ungido, fui escolhido para conhecer a nano-bolha. Eventualmente, quando ao seu abrigo, até neste blog eu escrevo.

O mal


 

Sou outro e pouco reconheço do que fui, embora insista em procurar, senão o todo, pelo menos traços reconhecíveis de mim próprio o que me parece, por vezes inútil. Colaborei em muito com minha própria perda. Por opção me auto-alienei,  o modo pelo qual de muito me apartei de convicções, hábitos, cenários, objetivos, amigos, amores, confrades e mesmo inimigos. Talvez consiga expor como me desconstituí; no entanto há em tudo uma matriz psicológica, uma maturidade de temperamento que é muito difícil de ser superada. Tantas foram as minhas ocupações no sentido de superar o que fui, que desisti, mais por fadiga do que por desinteligência, de parte dos meus propósitos. De todo modo, optei pelo mal, e é bem possível que esse seja o cerne da minha mudança e do fato de hoje não mais me reconhecer, não mais poder sentir com a mesma intensidade e com a mesma volúpia o que antes era tão comum e tão esperável.

A opção pelo mal foi consciente; e como dizer isso sem que acorra qualquer comiseração, qualquer sentimento de pobreza, sem que haja um encolhimento de minha humana condição; como ver em mim a degradação dos sentimentos, trocar a inocência pela impudicícia, a ética pela corrupção, a beleza de alma pelo vício enojadamente escancarado, a solidariedade pelo egoísmo? Como não confranger-me ante minha pessoa? Por que, hoje em mim não restam dúvidas, senão certezas de que devo permanecer assim, ilhado em minhas pequenas (ou nem tanto) maldades? De certa maneira, simplesmente me habituei à maldade, especialmente às pequenas misérias e tristezas das quais hoje, sou companheiro convicto.

Aprendi, contudo, que o mal depura e que a pureza ajuda a degradar. A pureza é branca, virginal, não admite qualquer risco, portanto não admite o pecado, as hipocrisias, as mentiras sub-reptícias, a sujeira; mesmo a sua poeira deve ser evitada pela superfície imaculadamente estéril do que se estende ante um plano totalmente neutro, como a superfície lisa de um porcelanato. Não há sangue humano na pureza. A sua construção, ao contrário de grandes movimentos de humanidade, esconde o radicalismo de raça, não admite o que se associa ao deletério, ao que se irá degenerar. As excrescências não habitam a superfície lisa, monocórdia e sem atrito da pureza. Assim, optei pelo que é brutal e não cálido, pelo que é real, e não virtual, pelo que é solitário, não pelo que é compartilhado, pelo contraditório, não pelo consenso, pelo sujo, não pelo limpo, enfim, por tudo que não pudesse em mim despertar o sentido de participação em algo que só existe na imaginação e nos sentimentos pueris de uns pobres coitados. Não sou coisa, por isso não sou um produto; quanto à pureza, lido usando com prazer a máscara que ostentam os algozes.

 HILTON BESNOS

F. e a diagonal


 

F. sabia que talvez não fosse possível atravessar a avenida Assis Brasil; sempre, àquela hora o vaivém dos veículos era enlouquecido, além dos dois corredores de ônibus, cujo trânsito nunca cessava. Mesmo assim, movido pelo desespero, F. cruzou a avenida na diagonal. Pura roleta russa. Pura diagonal de homem gol. Pura diagonal que traduzia uma vida também assim, de atitudes incompreendidas, contidas até o extremo, atravessadas. F. realmente não se entendia. Tanto modo pra se matar e foi escolher justo o mais difícil. Poderia simplesmente usar, dos métodos, o melhor: um frio disparo de arma contra o palato. Mas não,foi buscar justamente um dos mais arriscados e que podiam, além de causar muita dor, falhar. Como quase tudo em sua vida, pensou, mas pensou errado e agiu pior ainda. Coisa de amador ou de quem, no fundo não tem coragem de assumir o que quer. “Sou um fraco”, foi o último pensamento que teve antes de sofrer o inevitável golpe.

F. não morreu, mas partiu a coluna, ficando tetraplégico e – se algo ainda podia ser pior – totalmente dependente de quem tanto odiava, justo quem lhe fizera cair em um desespero tão grande que o impeliu a atravessar, como um ensandecido a avenida Assis Brasil. “Entrevado” era a única palavra que vinha à mente de F., prostrado em cima de uma cama para sempre, uma vez que não dispunha de recursos para amenizar suas dores. Seu desgosto e a sensação de inutilidade eram sua companhia constante. Queria, urgentemente, levantar daquela maldita cama que o retinha como uma prisão e que o afastava definitivamente de uma vida que tanto gostaria de retomar.

Em uma madrugada, quinze anos após o acidente, reduzido fisicamente a um nada e totalmente dependente, lhe vei0 a redenção esperada, através de um ataque cardíaco fulminante; nada pode salvá-lo e, gostemos ou não, a história acaba aqui, porque nem sempre a vida real segue os roteiros de novela e menos ainda os heróis estão dispostos, quando desejamos, a salvar o mundo.

A cidade e seus fantasmas


Sapere aude, junho de 2009

Ali, naquela planície, havia uma cidade, e ela era como algumas cidades que temos em nossa mente. Todas as cidades; ali havia um rio que serpenteava e a abastecia durante o ano inteiro, e havia também ruas, avenidas, vielas, pequenas pontes, travessias, monumentos, praças e muitas pessoas que iam construindo seu dia-a-dia, amando, envelhecendo, nascendo e se aposentando.

E como em toda a cidade, havia os prédios, todos eles, os históricos, os modernosos, mesmo os shoppings (não há uma cidade sem eles…) e eram antigos, de todas as cores possíveis e ainda aqueles que foram perdendo as cores, as escolas, as repartições públicas, os hospitais, mesmo os hospícios, enfim, havia tudo ali que existe dentro de uma cidade, os lugares mal-afamados, os lupanares, os distritos policiais, as sarjetas, a marginália que aumentava a cada final de dia e que ali parecia multiplicar-se enquanto o rio era ferido, maltratado, mas seguia o seu curso sempre igual entre as montanhas e os vales.

E ali, naquela cidade, havia uma avenida e dentro dela uma rua transversal e dentro dela os seus prédios e dentro de um deles um apartamento no qual vivia um homem só e dentro do homem havia um coração e dentro dele nada, absolutamente nada.

Talvez, pensando naquele homem sem cheiro nem cor, que se confundia com a própria paisagem, com as pedras e com as cores dos tijolos que construíam as paredes, e sem nada no coração que alguém, de certo modo poético, tenha cunhado a expressão cidade-fantasma.

Na noite, na chuva


 

Há um homem que busca ver o que se esconde sob a chuva que molha as calçadas, as ruas, que se precipita sobre a cidade. Ele está ali, olhando através da vidraça as luzes âmbar das noites, mas seu pensamento está absolutamente longe, distante de tudo aquilo. Sua vontade atravessa a chuva, a noite, e vai perseguir seu desejo. Não, ela não está, não, ela já se foi, e tudo é passado. Há uma intensa sensação de vazio, um ato de resignação que o acompanha nos últimos meses. O homem veste um impermeável, sai para a rua, acende um cigarro e caminha em meio à chuva e ao frio. De certo modo, a água que cai o transporta à infância, à casa de madeira onde nasceu, e a lembrança do sorriso de seu pai de repente lhe aquece o coração.

Ele anda, anda, e vê luzes em perdidas janelas de apartamentos e ter cruzado por pessoas apressadas. Caminhou serenamente entre a chuva, tentando justamente não pensar, se concentrando apenas na força de suas pernas, em sua respiração e na própria noite. Finamente, entrou em uma cafeteria, improvável, pequena. Havia ali apenas duas pessoas além dele. Pensou que o café lhe faria bem, e foi o que aconteceu. Saiu para a noite, acendeu outro cigarro e continuou andando. O pensamento recorrente apanhou-o em cheio. Lia, as crianças, Fabiana, o amor, a casa, tudo acabado, e cada lembrança era como um alfinete que o feria. Continuou andando.

Quando o dia amanheceu, ainda o encontrou ali, como que carregando um peso excessivo que teimava em assoberbá-lo. O sol iluminou-o enquanto ele, o caminhante, buscava timidamente o caminho de volta.

Peregrinação


Em algum lugar, bem longe de onde estou, começou minha peregrinação. Cheguei aqui, com todos meus sentidos, com meus percalços, com um pouco menos de espírito mas ainda sendo solidário, cheguei aqui, talvez para simplesmente sentar e te contar uma grande história, mas não essas de vultos e heróis pátrios, nem de descobridores, nem de talentosas pessoas. A história que venho te contar é a minha mesmo, essa que fui entretecendo nos dias e nas noites em que vaguei por aí, em que fui eu um parco herói de baixo coturno. Mas, se não quiseres escutá-la, não vou sequer me amolar, pois a compreensão habita em mim. Assim como o conformismo. Não, não te preocupes se te disse que percorri grande distância para que fosses meu ouvinte. Esquece, afinal, como se diz por aí, eu sou mentiroso. Essa é a minha fama, e portanto é nela que baseio meus comportamentos. Depois de tantos anos, é bom que brindemos à alcatéia com nossa mais solene indiferença. Me querem mentiroso, pronto! assim eu serei, e não se discute mais isso.

Sim, é por esse motivo talvez, por dares mais atenção aos boatos que aos fatos que não me queres escutar. És uma pessoa dessas sérias, comprometidas, probas, que tem muitos compromissos e não deves mais perder teu tempo me dando tua atenção. Sim, sim, as pessoas sérias sempre dão alguma coisa aos outros, para que esses fiquem lhe devendo favores. Eu, cá com meus botões, percebo: me destes já uma parte do teu tempo, mas não podes mais fazê-lo, então só posso agradecer a tua misericordiosa contenção ao me ouvir, pelo menos até aqui e a história – ah, sim, a história! – não, não te preocupes, afinal ela é longa, o tempo se esvai como líquido entre as mãos, e é melhor assim que tudo fique para outro dia, quando também não mais irei contá-la.

Não te dês ao trabalho sequer da curiosidade, pois em mim habita o improviso e decerto, do muito que te diria, a maior parte seria pura invencionice, assim, hás de sair agora, no que te dou razão, embora não te dê meus argumentos, minhas metáforas, sequer minhas metonímias, que tanto aprecio. Ficamos assim, então, sem mágoa, sem remorsos, sem desconfianças, tu partes e levas contigo o que trouxesses, tuas tarefas, teus agendamentos, tua pouca paciência, enquanto eu, pássaro livre e altaneiro levo em mim apenas o trinado da liberdade dos que nada tem a perder. Adeus, então.