Sobre a vida


Não raras vezes buscamos, procuramos, saímos à cata, conversamos, descontraidamente ou não, a respeito do que imaginamos ser o “sentido da vida” – assim mesmo, aspeado, para mais ressaltar tal expressão que tanto motivou e motiva a todos de modo geral e a filósofos e pensadores de modo mais próximo, deixando a cada qual que a interprete na conformidade de suas vivências e trazendo sempre novas possibilidades de indagação. Há fatos que ocorrem no bojo do que denominamos senso comum, entendido como o pensamento do cidadão médio, e que integram o saber ou sabedoria populares que em boa parte fundam-se no empirismo. Muitos desses saberes explicitam-se pelos “ditados populares”, cuja abrangência limita-se tendo em vista as culturas e as historicidades dos seus autores. Quando dizemos que as pessoas devem ter um meio legal ou legítimo que aponte de onde vem o seu suporte financeiro, estamos referindo-nos ao senso comum e que o direito consagrou. Contudo há situações que não estão dentro do previsível e que nos fazem refletir profundamente a respeito da existência de um cerne, anima, alma metafísica que imprime a vida uma qualidade que não nos é perceptível, menos ainda apreendida. Essa essência que transcende o comum, interage constantemente com o imprevisível, de um lado, e o esperado, de outro, com a infortunística e com o senso-comum, com o destino (se assim quisermos chamar) e com o sabido, o acaso e o rotineiro. Seria razoável se representássemos a vida por um símbolo ying-yang ou talvez entre Tanathos e Eros? Possivelmente não, pois a mesma estaria em fluidez entre os limites simbólicos expressos; a vida é pulsão, é reconstruir, o tênue que dá-se entre o conhecido e o desconhecido, entre a razão e o sentimento, entre o efêmero e o que cria raízes, esse o universo em que nós todos nos movimentamos, e aí recriamos nossas existências, reescrevemos nossa história, mesmo que para alguns os capítulos sejam monótonos ou monocórdios ou mesmo tenham seus atores perdido a vontade de compor ou recompor o dinamismo vital: mesmo assim a pulsão estará lá.
Estamos insertos no dinamismo e pulsar vitais, dentro do que a cultura recebida e vivida em nossas circunstancialidades aponta; somos portanto seres em construção, mesmo que tenhamos optado por darmos um caráter absolutamente rotineiro ou burocrático à nossa própria existência. A profundidade das mudanças manifestar-se-á dentro de décadas ou de dias, seguindo ritmo próprio e natural.
Temos aqui que fazer um pequeno recorte, que abarca o glamour fantasioso e irresistível da expressão destino que, para muitos, é um dado metafísico que tem uma função determinante não só na estrutura dos fatos, mas rege modificações interessantes na própria vida das pessoas. Destino é algo que você acredita que exista ou não, pelo menos no que concerne àquele ter força suficiente para modificar os fatos futuros. Se você crê firmemente em tais assertivas, o sentido da vida será o curso do destino, capricho da sorte. Cessam aí as dúvidas, porque a certeza reside justamente na incerteza do que virá. Deuses regerão os caminhos da vida, dos quais seremos navegantes, já com todos os portos e cais pré-determinados.
Quando os fatos da vida nos surpreendem, especialmente de modo desfavorável, na maior parte das vezes não conseguimos entendê-los, apenas sentimos o impacto e as alterações que virão a partir daí; nem sempre a resignação acompanha nossos sentimentos. Angustiados, não nos acorre nada que seja razoável: muitas vezes a injustiça, a perda permanente ou não de quem amamos, uma doença, enfim, apenas transmite-nos dor, desamparo, impotência, desolação. Muitas vezes parece que estamos absolutamente jogados ao caos, e que a vida perde seu sentido.
Aí quando a surpresa nos abate muitas vezes nos interrogamos: há sentido em tudo isso? Há sentido na miséria, na violência, nos crimes, nos ataques sangrentos, nos homicídios, nas doenças insidiosas, na injustiça? Há sentido na sexualização exacerbada das crianças, há sentido na pedofilia, na fome, na usura, no ganho desmesurado, no racismo, nos extremistas e nos fanáticos, entre outros? E aí, forçosamente temos de admitir que, a exceção dos flagelos naturais e das doenças, a construção de uma sociedade reflete sua historicidade, sua cultura mas, sem dúvida, também mostra, claramente, seu grau de educação e seu leque de livre-arbítrio. Quando não há solidariedade, há exacerbação da miséria, há um leque de necessidades intocadas. Quando não há trabalho, quando não há lazer, quando a violência campeia, por certo há menos cultura, menos comida, menos habitação, e especialmente, menos educadores e educandos. A falta de ética é uma opção social, como as demais. E os intérpretes e atores de todos esses atos que compõe a sociedade humana somos nós mesmos. Não há porque buscar no outro o que negamos a nós mesmos: o auto-conhecimento, a disciplina, o amor, a meiguice, a delicadeza. E só podemos descobrir sentido na vida, mesmo em suas catástrofes pessoais quando desenvolvemos um profundo senso de ética, de amorosidade, quando passamos da posição de juízes à posição honesta de observadores e atores. Interagimos com a vida, sendo parte dela, e por isso a recriamos em nossa carne e nosso espírito.
A religiosidade não é algo que garanta que seremos solidários, amorosos e especialmente que nos importaremos com o outro. Contrariamente, podemos usar um simulacro para justificar nossas próprias indiferenças. A própria organicidade ou fundamento das religiões pode dar-nos um estuário para que, freqüentando templos, mesquitas, igrejas, sinagogas, e outros locais dedicados ao espírito, possamos continuar ensimesmados em nossos invólucros de egoísmo, senão vejamos.
Dizem as religiões haver um ser superior que controla e vê tudo, que nos observa mesmo antes de nascermos. E nos perdoa sempre desde que nos arrependamos de nossos pecados com sinceridade, tendo por todos seus filhos a mesma consideração e amor. Ora, a idéia de um grande pai que nos orienta e nos dará seu perdão eterno e irrevogável poderá ser entendida por muitos como um ato de liberalidade; se assim for, mesmo que não sigamos os caminhos religiosos institucionalmente traçados para atingir a glorificação, ao cabo e ao fim estaremos perdoados, o que reforça o glamour do destino, ou, em outras palavras, a indecisão do que virá ou advirá de nossos comportamentos poderá ter uma solução romântica, ou uma sustentação no improvável, na essência do non-sense. Uma gotinha de caos libertador no cotidiano, a teoria do destino…inclusive para refutar o que entendemos seja livre-arbítrio…
Para quem, contudo, não crê em tal possibilidade, abrem-se outros caminhos que poderiam ser trilhados para entender o que seria, afinal, tal “sentido”. No meu entender, há muito de circunstancialidade, muito de avizinhamento e uma dose larga de livre-arbítrio. Creio sermos os protagonistas de nossas expectativas, o que significa dizer claramente que construímos e reconstruímos diuturnamente um sentido para a vida, e somos (re)construídos por esse mesmo sentido, a partir da imersão em nossas próprias circunstâncias e nas do outro e em que nos avizinhamos da realidade externa e de nossos próprios desejos e capacidades. Não somos, pois, perfeitos e acabados, mas menos uma pluma que o vento joga a seu bel-prazer e de acordo com as suas correntes. Estamos em construção, e é o ritmo dessa que nos vai tornando pessoas mais conscientes do que somos.
Quando falo em circunstancialidade, quero dizer que nunca viajamos sós, porque nossa cultura nos acompanha, nossos ritmos continuam nos pressionando a agir desta ou daquela forma. Somos nossas circunstâncias, estamos imersos nela, e nossa própria moralidade e senso de ética estão aportados em tais aspectos. Muitas vezes não vemos sentido em decidir desta ou daquela forma, e quanto mais complexos os assuntos, mais forçam uma aparência simples, quase sem maiores conseqüências. Tomemos cuidado, ao permitirmos que as circunstâncias tenham a capacidade de iludir-nos, fazendo-nos ver apenas o que não passa de momentâneo, mas que toma foros de verdade absoluta, porque nossa possibilidade de enxergar está razoavelmente comprometida… as vezes é necessário que não decidamos, mas que permitamos que o tempo opere seus efeitos.
Avizinhamento tem justo o sentido da palavra: vizinhança, avizinhar, limítrofe, estado de limite. Estamos nos aproximando de um determinado ponto, de um determinado referencial. Podemos ou não rejeitá-lo, e agiremos na conformidade do que nos for possível escolher. Outrossim, num mundo absolutamente padronizado, talvez não vejamos em princípio,sentido em duas situações: na primeira, como não sentirmo-nos presos dentro dessa visão de estranheza e na segunda, porque contestar o que já está posto, o que já introjetamos como mais ou menos inalienável, correto, não-precário, enfim, todas essas noções que conhecemos de longo tempo.
Temos medo dos nossos vizinhos, do que eles possam pensar, das suas fronteiras, do pensamento deles, mesmo temos medo de seus ócios, então preferimos, não raras vezes, ignora-los, deixamos de vizinhar, tornamo-nos estéreis em meio a pedras. Esquecemos que o isolacionismo de há muito mostrou e mostra suas desvantagens. Deixamos de apoiar e dar apoio. Deixamos, simplesmente deixamos que aconteçam arbitrariedades, nos tornamos veículos indiretos das mesmas, porque fomos acostumados a pensar de modo pragmático unicamente em nossos umbigos…Não somos solidários ou se o somos, pretendemos fazê-lo quanto mais distanciado do outro, melhor…Existem movimentos no mundo inteiro, especialmente de ongs para que possamos dar maior apoio a quem necessita, o que já é muito bom, despertando o sentimento de que, antes de sermos vizinhos, talvez sejamos simplesmente pessoas em busca de outras, querendo todos carinho e solidariedade, em contraponto a uma vida gris; contudo, essa nossa tendência ao individual, ao narcisismo pode, sim, trazer conseqüências a todos nós, tendo condições plenas de alterar, para melhor ou pior o “sentido” de nossas vidas.
Livre-arbítrio…rios de tinta já foram escritos sobre o livre-arbítrio. Digo simplesmente que entendo-o como nossa capacidade de dispor. Especialmente de nós mesmos. Analisar o livre-arbítrio é tarefa vastíssima que merece e demanda mais que meia dúzia de idéias, talvez algumas mal acolchoadas…sendo ele no entanto não é razoável que esqueçamos que o livre-arbítrio é mais do que um item que se disponha quando nos referimos a esse assunto: é, sim, uma mola propulsora…
Enfim, talvez o sentido da vida seja bem mais que uma metáfora, da qual desempenhamos não só o papel do crítico, mas especialmente, do autor e ator que irá dar cor, sentimento, e os marcos referenciais que reconstruirão incessantemente seu próprio caminho. Entender que a vida tenha um sentido é entendermos nossa possibilidade de intervir, interagindo de modo ético e humano com nossa própria existência e com a do nosso irmão.

Era uma vez… o era uma vez!


Uma vez o era-uma-vez se cansou de ser sempre o início de histórias infantis. Ah, sim…sempre começava histórias com duendes, com fadas, com bruxas e com guerreiros…não se lembrava mais de quantas histórias, lendas, contos, conversas sempre começavam sempre do mesmo jeito…

Era uma vez decidiu que deveria tirar férias, sair por aí, entrar e sair das histórias como se fosse um amiguinho disfarçado de vento, visitar seus grandes amigos: os livros, as histórias em quadrinhos, as revistas para crianças e, talvez, aventurar-se por outras coisas mais sérias, dessas que os adultos lêem, e que chamam, com orgulho, de literatura.

Mas no dia em que foi visitar a literatura, ela havia viajado, então era uma vez percebeu que quem escrevia literatura achava que não tinha nada a ver com era uma vez…

Enfim, era uma vez resolveu se libertar, mas, ao mesmo tempo, o que seria das crianças sem “era uma vez”? Como começariam suas histórias tão bonitas, tão cheias de colorido e de luz? Foi aí que era uma vez tomou uma decisão: chamaria outras expressões suas amigas para substituí-la! Tão fácil, tão simples!

Primeiro veio o tal do “então”, mas não cabia…então rimava com pimentão, com canção e com o tio Elesbão, mas era muito muito “ão”. Que confusão!

Depois veio o  “em primeiro lugar”…ora! Imagine uma história com “em primeiro lugar”, “em segundo lugar”, “em terceiro lugar”…parecia mais um concurso de miss, e não um início de história…

E veio o tal do “inicialmente”. Imagine um conto iniciando assim: “inicialmente vivia um sapo numa lagoa…” É, parecia que o nosso amigo era uma vez não teria folga nunca!

Cansado, mas preocupado, de repente alguém o chamou: “-Compadre! Ô compadre!” Era uma vez aguçou o ouvido: “Quem seria?”, pensou.

“Sou eu compadre! Vim substituí-lo!

Finalmente! Finalmente, e era uma vez pulava de felicidade! Tão simples, mas agora poderia tirar férias! Bastou que chegasse o grande amigo….qual? qual? Ele mesmo! o Uma vez!!!!!!!!

Uma vez um pirata….

Uma vez um duende….

Uma vez uma palavra …. e assim por diante!!!!!!!!!!!!

Bravo crianças!

Agora você pode começar sua própria história! Então, vamos lá, comece agora mesmo. Olhe para quem está com você e inicie: UMA VEZ…

 Hilton Besnos

Nada para escrever


Nada para escrever, escrevendo já o que outras linhas discursaram….

Disseram e muito, especialmente do que ficou por aí, nas mensagens truncadas, nos pedaços de mensagens perdidas, especialmente nas intenções. Vontades, desejos que vão parar nas escritas, nos contos, nas fantasias, em um mundo todo que traça em si mesmo uma argumentação, uma rede que vai se expandindo através do tempo, das experiências, dos limites e dos limitantes que impomos a nós mesmos, ou que aceitamos imporem, aos manejos e remanejos nos quais vamos acomodando as nossas histórias, e daí reinventando estórias e revisitando, em primeiro lugar, a nós mesmos.

Escrever é um bálsamo, mas de vez em quando pode ser um gume afiado a nos espreitar quando, para os leitores, criamos personagens mas, intimamente sabemos que se trata de uma confissão, de uma crueldade que desejamos ou abominamos, mas que está ali, em nossas redondezas, em nossas vizinhanças mentais… criamos então a ficção, forma sutil de compartilharmos tudo com todos, de fazermos com que nos identifiquemos com uns e outros personagens, e gozemos, especialmente, do simulacro de sermos deuses enquanto confessamos a nós mesmos nossos pecados e expiamos nossas culpas.

Alimentamos assim, aqui e ali, nossas embarcações de novos portos, nossas camas de outras(os) personagens, nossas angústias de novas vibrações, como se fossemos imensos tambores que, além de repercutirem em nós mesmos, fazem também com que o mundo reconheça, em cada uma de suas batidas, o muito de humanidade e de inegável tristeza a que estamos condenados. Afinal, como navegar é preciso e viver não é, se a poesia que tornou em beleza o pensamento de Fernando Pessoa é ainda e será a que nos embala e embalará, nos fazendo sonhar? Como descolarmos de nós (nosotros seria melhor, mais sonoro, aqui) nossa descendência lusitana, com seu muito de dramaticidade que conduz nossas próprias naus? Como escrevermos, a não ser em português? Salvai-nos, Saramago!

Não me conformo


Dia desses me aborreci quando tomei o ônibus R41-Protásio. Podendo parar próximo a mim, e sem qualquer outro ônibus por perto, o motorista decidiu estacionar, simplesmente por uma falta de atenção com o passageiro, muito mais longe. Quando reclamei, fui destratado.

O que tenho observado, cada vez mais, é o individualismo, a inflamação dos egos e o banimento do humor e da delicadeza, que alguns chamam de urbanidade. Jovens e adolescentes que estejam sentados nas poltronas de um ônibus são incapazes de ceder seu lugar para grávidas ou para pessoas idosas ou com algum tipo de dificuldade.

Motoristas utilizam indiscriminadamente buzinas a todo instante, inclusive para assustar pedestres; costumam também alguns passar por cima das poças d’água em dias de chuva, para molharem os passantes que, por sua vez, tem o hábito de atravessarem ruas e avenidas como se estivessem em casa indo da sala para a cozinha, sem qualquer tipo de cuidado. Em dias de jogos de futebol ou algum outro evento de monta, saem os automóveis buzinando e os torcedores gritando, sem dar a mínima se estão ou não passando por algum hospital, por exemplo. O trânsito, assim como os hospitais e as salas de professores são locais sabidamente estressantes.

Colegas de trabalho não se comprazem mais só em bisbilhotar a vida de seus pares, usando ainda de maldade contra os mesmos, apenas para fazerem uma mediazinha com a direção, ainda mais em época de eleição de escola, ou em situação semelhante. Se você demonstra interesse em relação a terceiros, se os cumprimenta e os ouve educadamente, azar o seu, porque serão raros os que retribuirão. Há mais de vinte anos atrás Betinho, irmão de Henfil, ambos falecidos, disse em um programa que estava convencido que havia uma campanha mundial para imbecilizar as massas. Tenho plena certeza que ele estava certo.

Dias atrás a direção da minha escola convocou uma reunião com os professores. O únco assunto pautado foi, durante uma hora, uma reclamação constante em relação aos procedimentos errados dos professores em termos administrativos. Tudo foi cobrado. Em nenhum momento houve sequer uma referência a algo de positivo que os professores porventura tivessem feito. A direção esclareceu que uma boa parte das informações que serviram de base para a reunião partiram de alguns professores, obviamente não identificados mas, por alguns, facilmente identificáveis, o que fomenta ainda uma separação maior entre o grupo. E aqui, o adágio judaico cabe: “O que Pedro diz sobre Paulo diz mais sobre Pedro do que sobre Paulo.”

Esse deslocamento que sinto às vezes em relação à época em que vivo é muito real. Gostaria de não ser um número, uma matrícula; adoraria viver em um mundo com mais gentileza, mais autenticidade, mais solidariedade; adoraria ser respeitado pela história pessoal que construí ao longo dos anos, e não de ser tratado como alguém que só interessa quando e nas circunstâncias em que são consideradas convenientes por “a”, “b” ou “c”, sejam quem sejam. O mesmo estendo aos demais e de modo geral. Continuo detestando arrogâncias, burrices, desinteligências, games e estratégias. Mas, definitivamente, deveria me conformar a isso tudo. E aí, talvez o problema seja meu: não me conformo.

Minha derradeira vitória


Tenso como uma peça de estanho, busco em tua vida o que restou da minha. Lembro-me, sempre, de como aconteceu a minha morte, meu derradeiro alento. A lâmina penetrou profundamente em minha carne; primeiro em meu braço, mas eu ainda vivia, depois meu fígado e rins foram golpeados, mas mesmo assim eu lutava desesperadamente, até que, finalmente, abandonei-me ao torpor quando a quarta facada feriu minha jugular.

Esvaí-me como uma vela se apagando, e apenas restou de mim o que agora sou. Algo que vagueia. Meu ódio é tão grande que necessito agora, quase como se fosse uma nova vida, buscar as tuas vidas, aquelas que ocultastes de mim, as que me escondesses, me condenando a ser o que agora sou. Agora percebo que não vivestes apenas uma vez, mas muitas, que não eras apenas quem eu conhecia, mas que teu corpo apenas era uma lembrança a mais entre todas as vidas que já tivestes. Em todas elas, de algum modo, já me matastes, ou de amor ou de compaixão. Sempre fui tua vítima, sempre fosses minha algoz.

Por ora já te encontrei algumas vezes, mas por mais que eu fizesse, sequer notasses minha presença. Te busquei na tua casa, na odiosa casa onde fazes jantas amorosas para tua família, onde teu homem se refestela em teu corpo macio e delicioso que já me pertenceu. Fostes tu que me mandastes matar, por puro medo. Medo de perder o teu homem, os teus vestidos, os teus broches, as tuas jóias; medo de perder teu filho, de ver escapar entre tuas mãos adoráveis o que conseguistes graças às tuas seduções.

De onde estou, posso ver tudo, inclusive o que pensavas e pensas de mim. As tuas preocupações quanto a ligarem minha morte à tua pessoa. Ah, se eu pudesse gritar! Se pudesse ser ouvido! Todos saberiam como és vil, maliciosa, como usas de teus maneirismos para conseguir o que queres, quanto és capciosa e quanto o ardil habita teus seios e tua mente insidiosa! Mas, de onde estou, ninguém me ouve. Mais uma vez estou só.

Desloco-me entre as paredes de tua sala, te vejo dormir. Quanto a mim, não durmo mais, não descanso, não amo, não falo nem sussurro e apenas o ódio me nutre, me deixa rígido como uma pedra. Não tenho fome, nem sede; não tenho compaixão nem solidariedade. Sou uma essência de tormenta, sou um ser sem qualquer ligação com o mundo e se não passo de uma lembrança mais ou menos chorosa para os meus, devo isso a ti, que encomendaste a minha morte, e pagou a mão do assassino.

Não havia amor entre nós, isso nunca houve, apenas paixão, desejo, vontade de sexo, como se fossemos dois animais. Éramos assim, dois corpos que vadiavam juntos durante o tempo que podíamos. Uma unidade é o que éramos. Houve, contudo o momento em que nos separamos; e daí para diante te recusastes a me receber e a sequer falar comigo. De amante passei a ser temido, porque te poderia denunciar.

Aproveitei, sim, – claro! – aproveitei a situação: passei a te extorquir dinheiro, para gastar com outras e para te humilhar. Me suplicastes, lágrimas nos olhos (grande hipócrita!) para que eu te deixasse em paz, mas não te escutei e, de novo, te tomei o corpo e mais um pouco de teu dinheiro. Foi a última vez das muitas em que te possuí, mas estavas apenas entregando teu corpo, pois tua mente não mais era minha.

Então me mandaste matar. Tudo quanto passei, apenas uma certeza me acorre: vais pagar. É o que me embala, o que me nutre, o que me espanta e me acalenta: tomar a tua vida como mandastes tomar a minha. O que me poderia impedir é o sentimento que te devotei, mas, como tu mesma, ele era falso. Sempre fomos falsos, mentirosos, subreptícios, maldosos.

Não sei qual de nós é o mais falso, mas o brilho do meu ódio não. Esse, sem dúvida, é verdadeiro, como verdadeiro era o brilho da lâmina que me feriu e que me pôs aqui, absolutamente só, tão amargamente triste como uma pequena ferida a ferro e fogo, que não cicatriza. Somente me sustenta a tua lembrança e, alegre, já planejo, aqui, minha derradeira vitória.

HILTON BESNOS

Histórias e Matheus


Contei uma história a meu filho Matheus quando ele tinha três anos. Ele gostou tanto que pediu para que eu a repetisse. Fomos, então, criando o hábito; eu de contar histórias e ele de escutar e reinventá-las de acordo com a sua fantasia. Era muito bom: se numa história eu falava “trem”, lá se ia o Matheus a imaginá-lo, sua cor, as montanhas nas quais ele subia e descia, os caminhos percorridos, os rostos das pessoas que estavam dentro do trem, as estações onde parava…
Se a história era sobre algum super herói, lá vinha meu filho, agora com quatro anos, a me ensinar se ele voava que nem o super homem ou se pulava de prédio em prédio como o Spider Man. Assim crescemos nós, contando e ouvindo histórias, um para o outro.

Um dia, quando eu me der por conta, os termos das histórias vão mudar: serão sobre ética, conveniências, futebol, namoros, sexo, negócios, opções de vida, expectativas de emprego, possibilidades de viagem, promoções, faculdade (ou não!), memórias, memórias… do tempo em que éramos os dois, tão felizes e ríamos nas praças, nas caminhadas pelas calçadas, nas promessas entre as gôndolas dos supermercados, na ida de mãos dadas à escolinha, nas primeiras noções de cidadania e cuidados com as trilhas das ruas e da vida… quantas voltas! Quantas…

E vai, ainda, haver um outro tempo, no qual cada história de meu filho terá um pouco da minha história, e cada gesto seu um pouco dos meus gestos e em cada esperança sua, uma pitada das minhas ilusões. Só aí, quando eu não mais puder contar histórias é que meu filho me dirá, finalmente, qual era o destino do trem que nos guiou quando, meninos, tínhamos três ou quatro anos…

Ideologias


Às vezes nos vem a impressão de que tudo já está pronto e definido, e que viemos aqui somente para cumprir alguns rituais sociais e profissionais. É claro que a humanidade tem algum tempo já sobre a Terra, o suficiente para estruturar sociedades e destruí-las sempre que motivos e exércitos se levantem para tanto, em busca de maior poder e de áreas de influência.

Em algumas dezenas de oportunidades essa sensação de ser um pozinho no meio do aspirador pode ser massacrante, e esse tema já foi explorado algumas centenas de vezes. No entanto, esses sentidos sempre possuem um objetivo claro que, no básico, é o de nos tornarmos conformados ao perfil ao qual nos adequaram. Como tenho cinquenta e dois anos, já passei por algumas experiências e por uma visão mais integrada do que significam movimentos sociais.

Embora não tenha sido exatamente um rebelde dos anos sessenta, nem tenha estado em Praga quando os russos invadiram, fui criando, ao longo dos anos algumas idéias e observado alguns parâmetros que, se fizeram de mim o que sou, tem muito a ver com as sociedades ocidentais de modo geral. Pensando nisso, fui esboçando rapidamente alguns nomes e idéias estruturantes, que vou chamar de ÍNDICE DE INFLUÊNCIAS. Creio que boa parte das orientações que seguimos vem daí. Vamos então ao mesmo.

ÍNDICE DE INFLUÊNCIAS

Para FREUD a civilização resulta de duas tensões permanentes entre os princípios e mecanismos psicológicos que orientam em cada um de nós o prazer (ou a libido criadora, emancipativa) e o dever (ou a repressão ou tanathos, representando o sentido de aniquilamento ou obrigacional). Essa tensão entre o que desejamos e o que a sociedade nos permite é a resultante estruturadora do próprio meio social e de como vivemos em uma determinada época histórica.

Para MARX as sociedades humanas se regulam em suas razões políticas e econômicas, criando paradigmas e nutrindo-se ideologicamente. Para ele, ideologia sempre foi um expediente das classes dominantes manterem e expandirem seu poder, graças ao domínio do capital e dos meios de produção. Analisou com acurada e crítica visão social as formações das diferentes classes que emergiram através da exploração do trabalho pelos capitalistas em relação às forças de trabalho.

Para FRIEDMAN, da escola econômica de Chicago, o mercado deveria ser incensado. O Estado, por seu turno, não deveria financiar e onerar a sociedade tão brutalmente com benefícios, garantias e direitos sociais. A economia está atrelada ao mercado, e o fortalecimento das empresas seria suficiente para criar melhores condições de vida para a reserva de milhões de trabalhadores. As idéias do economista ajudaram a criar o conceito clássico de monetarização e, portanto, da diminuição do Estado. Era o planejado fim do welfare state, que nascera na Grande Depressão e da escola keynesiana, que entendia que o Estado deveria intervir na economia para criar condições de melhoria de vida para as populações.

Ainda durante a segunda guerra mundial, as potências mundiais se reuniram em BRETTON WOODS (1944) para organizarem um sistema financeiro mundial. Compareceram mais de trinta países, mas se sabia, já ali, quem mandava e porque mandava. Não se sabia quais seriam, contudo, tais instrumentos institucionalizados de domínio econômico. A ONU foi fundada em 1945 e as instituições como o BIRD em 1946. O BIRD se cessionaria em Banco Mundial e FMI. O gerenciamento do sistema financeiro mundial caberia aos Estados Unidos da América, que detinham na época condições econômicas, poderio militar e capital em estoque para firmarem-se como líderes da nova ordem mundial.

Bem antes de Friedmann e Bretton Woods, um engenheiro americano, que no final de sua vida dedicou-se à jardinagem, FREDERIC WINSLOW TAYLOR, entendeu que o trabalho executado nas fábricas era estressante, entorpecedor e pouco produtivo. Com base nessas realidades, criou um gerenciamento logicizante pelo que o relógio passou definitivamente um fator de produção, com uma grande alteração em nível social. Para Domenico Di Masi, sociólogo especializado em trabalho e nas relações sociais daí emergentes, ainda hoje dormimos, vamos às férias, trabalhamos e amamos seguindo o management implantado por TAYLOR. Se o engenheiro pretendeu, em princípio, que as pessoas tivessem mais opção para suas vidas pessoais e mais tempo livre, o sonho de Ícaro, contudo, despedaçou-se.

 

Memórias


 

Sábado passado estava assistindo o Serginho Groisman (Altas Horas, TV Globo), quando pensei: que bom que foi o meu caminho até aqui, em termos de leituras, filmes e sentidos que captei de tão variadas formas… Hoje, aos cinqüenta e dois anos, posso dizer, com uma razoável certeza que as pessoas que me conhecem me tem em alta conta, não pelo que eu possua ou deixe de possuir, não em razão do que eu tenha amealhado em termos materiais, mas, especialmente, em face do que eu sou. Com o tempo, creio que fui melhorando como pessoa, embora ainda haja muito muito a ser revisto e, certamente, a ser objeto de crescimento, simplesmente porque não paramos nunca de efetivarmos mudanças que às vezes são tão sutis que mesmo nós (ou principalmente nós) simplesmente não nos damos conta de tais necessidades.

Mas escrevo em razão das oportunidades que me foram dadas, e pelas tantas que criei, mesmo sendo considerado, na minha adolescência, um bicho meio careta e, sem dúvida, estranho. Não fui exatamente um sucesso em termos de conquistas e nem era um desses meninos com os quais as meninas sonham namorar. Então, minha atenção foi se voltando para expandir o meu mundo. Aí começa a melhor parte do que me construiu e me constitui até o momento. É claro que tive afetividades e amores de minha família, e que problemas como teto, lar e materialidades nunca me faltaram: eu era um filho de pequenos comerciantes, algo oscilando entre a baixa classe média e seus sonhos de ascendência e uma realidade que nem sempre era a que se buscava. Havia limitantes e limitações. Mas, como disse, de certo modo eu ia expandindo meu mundo. No entanto, se não tínhamos dinheiro para tanto, o que fazia com que houvesse essa melhoria, essa descontinuidade de prazeres e de obstáculos?

Vivi uma época muito interessante. Lembro que lia o Pasquim, Planeta, Júlio Verne, Érico Veríssimo (As aventuras de Tibicuera e mais tarde, todos os livros do Tempo e o Vento). Antes de ir para a escola, à tarde, ficava ouvindo, com meu padrinho, novelas no rádio, e tudo isso era um exercício para minha imaginação. Com meu pai ia aos jogos do Inter, escutava muita música, cantávamos e navegávamos pela poesia. Na minha época de adolescente, havia bossa-nova, jazz, jovem guarda, e os rádios tocavam músicas italianas, alemãs, enfim, viajávamos por outros locais, por outras línguas, e isso também foi ajudando a que tivesse uma pronúncia razoável em outros idiomas, por outras experiências diferentes de um inglês e de uma tendência a apenas um meio de vida diferente do nosso.

Assistia Rintintin, Bonanza, Jeannie é um Gênio, Papai sabe tudo, e escutar noticiário pelo rádio era algo comum. É claro que existem muitas coisas e muitas possibilidades hoje em dia, mas, o que me construiu tinha a marca do não-óbvio, do não-direto.A maioria dos programas em TV que eu assistia não eram apelativos, até porque sexo, basicamente, se revestia de um certo mistério interessante. Sexo era algo que tinha algo a ver com pecado, com gavetas escondidas, com algo tabu, proibido. Se era bom? Não sei, mas não me lembro, criança pequena, de ver cenas picantes na TV; ao invés disso, os programas mais se preocupavam com ideologias e sentidos de vida.

Mas muito do que assisti, tenho certeza que as gerações mais novas não experimentarão, desde fatos absolutamente triviais a outros, de cunho mais sério e histórico.  Havia novelas no rádio.  Bobagem? Nem tanto. Não tendo a imagem, tinha a imaginação, tinham os sons que indicavam e eram marcadores das ações. Imaginava o rosto dos personagens, os cenários, o desenrolar da trama, e isso, queiram ou não, junto com a supressão da imagem era um excelente ativador criativo. Assim, não recebia passivamente imagens, mas estruturava uma rede, um encadeamento de ações que eram produto das minhas reflexões. Assisti os famosos festivais de televisão.

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Beatles, Roberto Carlos, MPB, Jovem Guarda, Maria Bethânia, Batman, Pasquim (todas as edições, infelizmente perdidas no mundo), Realidade, Mundo da Criança, todas as obras de Monteiro Lobato, O Conde de Monte Cristo, O Tempo e o Vento, Mário Quintana, Bossa Nova, Guerra de 67 de Israel x Vizinhos (ou o contrário), exame de admissão (rodei para entrar no Julinho), perdas, danos, lutos (todos, de diversas ordens), namoros escondidos, mentiras, ajustes, jogos de corpo, Beira-Rio x Olímpico, último jogo no Campo dos Eucaliptos, sinagoga, bar mitzwa, goyim, ídiche, Revista Planète – que seguiu o mesmo rumo da coleção do Pasquim…-, jogo de bola, eu de zagueiro mas fazendo meus golzinhos improvisados, amigos queridos e guris chatos pra caramba, frio no inverno, uma delícia o outono, tempos e estações seguindo seus ritmos naturais, música, música, leitura, primeira copa do mundo em cores, meus pais, meus padrinhos, o mundo pela frente, o que fazer?

Há, enfim, centenas de referências que foram construindo o que hoje sou. Mas, sem dúvida, embora não houvesse uma tecnologia tão absolutamente presente em nossas vidas, havia tempo e oportunidade para sentarmos à calçada após um dia de trabalho e, para as crianças, tempo para brincar, jogar bola, jogar bolita e imaginarmos o que iríamos fazer no dia seguinte, fosse na escola ou fora dela. Não se trata de saudosismo, simplesmente, mas de notar o quanto as coisas hoje são diferentes. Existe toda uma pedagogia para o consumo, toda uma mídia para a venda e para a exploração comercial. Parece que algo se perdeu por aí, no meio do caminho: o que quer que seja, no entanto, é demais importante para ser relegado e, menos ainda, para ser esquecido.

PUBLICADO HÁ SEIS ANOS ATRÁS, em 2006. Hoje tenho 58. HILTON BESNOS

 

A tatuagem


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Há tempos que eu queria tatuar-me e, pensando se deveria ou não fazê-lo, refleti nas inesperadas conseqüências de se falar com a pele. Porque tatuar é falar, não é?Não tenho com quem conversar, mas uma tatuagem poderia dizer o quanto me sinto sozinho. Penso… será que eu e minha tatuagem conversaremos? Essas cicatrizes não me deixarão ainda mais só? Não freqüento a mídia, nem as galerias de arte; não sou político, nem jogador de futebol, portanto, esse desejo não é umnenhum golpe publicitário. Minha decisão de tatuar-me reside apenas na vontade de não afastar, nem que seja por um pouco, a solidão na qual estou prisioneiro.

Sou um homem que, amadurecido,já viveu o bastante para saber que o tempo não apenas devora tudo, mas, especialmente, vai apagando algumas memórias que me são muito caras. Sinto que progressivamente minhas recordações me abandonam, como me abandonaram os filhos, um a um.

Cada um deles possui suas razões, cada um deles também tem sua família. Os netos, igualmente, pouco me vêem. É claro que nas datas festivas fazem o possível para olhar o pai, o avô, e homenageá-lo, cada um de seu modo. Quando as festas se vão, igualmente eles partem, como o movimento contínuo das marés; eu fico aqui, imerso em meus pensamentos que também, a cada dia, mais se ausentam das minhas percepções.

Continuo elegendo um espaço de tempo para a leitura, pois até mesmo o computador, que manejava com uma certa destreza, atualmente me enfada. Minha velha paixão pelos livros retornou há cinco, seis anos… Prefiro sentir o cheiro das capas e de suas folhas do que a da luz infinitamente gélida de um monitor. Os livros me devolvem algumas de minhas memórias, me mostram que ainda estou vivo. Mas afinal, quando se está só, está-se realmente vivo?

Aposentei-me há muitos anos. Minha amada se foi antes de mim e dela são as minhas recordações mais prementes. O seu cheiro, suas risadas e mesmo seus amuos. Construímos uma história tecida de sonhos, de belezas entremeadas aqui e ali de alguns desapontamentos e mesmo de desilusões. Quando, à noite, mergulho em meus sonos breves e entrecortados, seu rosto e seu sorriso é o que mais vem se juntar a mim. A morte que levou-a e acabou com minha paz fez-me intuir que deveria preparar-me para encontrá-la. No entanto, passaram-se anos e nada mais tenho a reconstruir, senão a sua ausência. Quando as noites caem, muitas vezes apanho meu carro(ainda dirijo, posso garantir) e circulo sem rumo pela cidade. Todos me alertam quanto aos riscos que corro, mas, de certo tempo para cá, não sei se faria tanto mal ser surpreendido por algum perigo…

Numa noite dessas, sentei-me diante da tela fria de um computador. Num desses sítios de busca, lancei de pronto “tatuagem”, o verbete “tatuagem”. Há sete anos esse verbete me persegue e me assombra. Digo, também, que há sete anos esse verbete me instiga a escrever no corpo, um nome. Muito calmamente pensei, arquitetei, escolhi a melhor pele do meu corpo cansado.Tatuar-me? Há alguns meses, na Cultura, deparei-me com um capa vermelha de um livro que me parecia convidativo. O corpo em performance… Resolvi me tatuar. Inscrever o nome de minha amada sobre meu corpo de modo que jamais pudesse esquecer. A cada vez que lesse o que em minha carne ficaria gravado, retornariam as memórias, os beijos, as pequenas rusgas, e , com o recordar viriam, também, a infância dos filhos, os momentos que me orientaram como pai, os pequenos movimentos que fazemos diuturnamente e que são devorados com o romper dos anos. Viveria tudo de novo.

“Tatoo Press”, what that means? pensei eu quando entrei no ambiente acanhado, mas imensamente iluminado, onde exibiam-se desenhos e alguns posteres improváveis na parede. Imprensa tatuada? Não sei precisar se estava correta a minha literal tradução do inglês. Uma bela moça veio me atender, certamente, pelo sorriso, entendi que  ela pensava que, inadvertidamente, eu havia entrado na porta errada… “Não”, eu disse “eu quero tatuar a minha pele.” O espanto traduziu-se, em princípio, por um alçar de sombrancelhas, que emolduravam belos olhos castanhos. “Sim, quero fazer uma tatuagem, enfim, saber os detalhes, o que é necessário, quanto custa, etc”.

Dias depois eu tinha uma inscrição no meu antebraço. Mandei fazer um coração, como uma moldura. Dentro, o nome da minha amada e, abaixo do conjunto, emoldurado por uma lua azulada, o nome de dois locais de minha intensa recordação afetiva. Se senti dor? Claro que sim! Mas, de certa maneira, a dor é uma amiga que á me acompanha pela vida… mais próxima nos últimos anos.

Imagino, entre curioso e divertido, o que meus filhos e meus amigos irão dizer quando testemunharem a minha morte, quando enfim eu me for, e, só nesse momento, poderem ver minha tatuagem. Não contei para ninguém que me tatuei e guardo, comigo, como um mapa do tesouro, as pequenas cicatrizes coloridas na minha pele. Um derradeiro segredo, uma fonte de volúpia. Apenas quando me banho revelo para mim mesmo as marcas que mandei fazer em meu corpo. Converso de vez em quando com essas inscrições como se fossem uma amiga cálida, como se elas sempre tivessem estado ali.

De certo modo, a conversa com minhas tatuagens mantém minha mente ativa, porque na escuta… É um espelho que me recorda, ainda, o que de melhor em minha vida eu experimentei e disso eu posso contar. Dia desses, calor abrasivo, voltei à Cultura e procurei o livro que me deu a idéia da tatuagem. Lá estava o artigo na página 97, “Tatuagens e cicatrizes: performances narrativas na contemporaneidade”. A autora, das terras distantes de Minas, Lyslei, Lyslei Nascimento, nascimento… Que nome estranho para se ter em Minas… Em casa, com o livro a minha cabeceira, adormeci e parece que não sonhei… Quando o dia nasceu, demorei-me ainda a contemplar o pequeno livro vermelho e, junto a ele, minha inconcebível inscrição. Após tantos anos, nunca me sentira tão bem.